NÃO SÃO OS BOLINHOS DA VOVÓ: A CRIAÇÃO DO TRIGO MODERNO
O TRIGO, MAIS DO QUE qualquer outro alimento (aí incluídos o açúcar, as gorduras e o sal), está entranhado na experiência alimentar norte-americana, tendência que começou há muito tempo. Ele se tornou onipresente na dieta norte-americana, e de tantas maneiras que parece essencial ao nosso estilo de vida. O que seria de um prato de ovos sem as torradas, de um lanche sem sanduíches, de uma cerveja sem pretzels, de um piquenique sem cachorro-quente, de um patê sem crackers, do homus sem pão árabe, de um salmão defumado sem bagels, de uma torta de maçã sem a massa?
SE FOR TERÇA, DEVE TER TRIGO
Um dia, medi o comprimento da gôndola de pães no meu supermercado: quase 21 metros. Isso significa quase 21 metros de pão branco, pão integral, pão multigrãos, pão de sete grãos, pão de centeio, pão pumpernickel, pão fermentado, pão italiano, pão francês, palitos de pão, roscas brancas, roscas de passas, roscas de queijo, roscas de alho, pão de aveia, pão de linhaça, pão árabe, pãezinhos para acompanhar as refeições, pãezinhos de Viena, pãezinhos com sementes de papoula, pães para hambúrgueres e catorze tipos de pães para cachorro-quente.
E isso sem contar a padaria e os 12 metros a mais de prateleiras repletas com uma variedade de produtos “artesanais” feitos com trigo. E ainda há a gôndola de salgadinhos, com mais de quarenta marcas de crackers e 27 marcas de pretzels. A gôndola da padaria também vende farinha de rosca e croutons. E no balcão refrigerado de laticínios encontramos dezenas daqueles tubos que acondicionam massas de pães diversos, prontas para assar, pãezinhos de massa folhada recheados e
croissants.
Os cereais matinais, sozinhos, formam um mundo à parte, geralmente usufruindo do monopólio de todo um corredor do supermercado, da prateleira inferior à superior. Grande parte de uma gôndola é dedicada a caixas e pacotes de massa: espaguete, lasanha, penne, conchas, conchinhas, macarrão integral, macarrão verde com espinafre, macarrão alaranjado com tomate, talharim com ovos, das minúsculas partículas usadas para fazer cuscuz até tiras de massa com quase dez centímetros de largura.
E o que dizer dos congelados? O freezer tem centenas de pratos de macarrão e outras massas, além de outros pratos com trigo para acompanhar o bolo de carne e o rosbife au jus. Na realidade, com exceção do corredor de detergentes e produtos de limpeza, é difícil encontrar uma prateleira que não contenha produtos do trigo. Podemos culpar os norte-americanos por eles terem deixado o trigo dominar sua dieta? Afinal de contas, ele está em praticamente tudo.
Numa escala sem precedentes, o trigo, como cultura agrícola, é um sucesso, sendo superado apenas pelo milho em área cultivada. Ele está entre os cereais mais consumidos no planeta, constituindo 20% de todas as calorias ingeridas. E o trigo também é um inegável sucesso financeiro. De que outra forma um industrial conseguiria transformar o equivalente a 5 centavos de dólar em matéria-prima em quase 4 dólares de um produto chamativo e simpático ao consumidor, e, ainda por cima, com o endosso da Associação Norte-Americana de Cardiologia? Na maioria dos casos, o custo do marketing desses produtos excede o custo dos ingredientes em si.
Alimentos preparados parcial ou inteiramente com trigo para o desjejum, o almoço, o jantar e o lanche tornaram-se norma. Certamente o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, o Conselho de Cereais Integrais, o Conselho do Trigo Integral, a Associação Norte-Americana de Dietética, a Associação Norte-Americana de Diabetes [ADA] e a Associação Norte-Americana de Cardiologia ficariam felizes com uma dieta como essa, pois saberiam que sua recomendação para um maior consumo dos “cereais integrais saudáveis” conquistou seguidores numerosos e dedicados.
Então, por que essa planta aparentemente benigna, que sustentou gerações de seres humanos, de repente se voltou contra nós? Para começar, não se trata do mesmo cereal que nossos antepassados moíam para fazer o pão de cada dia. Ao longo dos séculos, a evolução natural do trigo ocorreu apenas discretamente, mas, nos últimos cinquenta anos, sob a influência dos cientistas agrícolas, ele sofreu mudanças drásticas.
Para tornar a planta resistente a determinadas condições ambientais, como a seca, ou a organismos patogênicos, como os fungos, linhagens de trigo sofreram hibridização, cruzamentos e introgressão. Mas as mudanças genéticas foram introduzidas principalmente com o objetivo de aumentar a produção por área cultivada. A produção média de uma fazenda moderna norte-americana é mais de dez vezes maior que a de fazendas de um século atrás. Passos tão gigantescos na produção do trigo exigiram mudanças drásticas no código genético da planta, o que incluiu a substituição das altivas “ondas trigueiras” de outrora pelo rígido trigal “anão” atual, de elevada produtividade e não mais que 46 centímetros de altura.
Mudanças genéticas dessa natureza, como veremos, tiveram seu preço. Mesmo nas poucas décadas transcorridas desde que sua avó sobreviveu à Lei Seca, enquanto dançava a Big Apple, o trigo passou por inúmeras transformações. Com o avanço da ciência genética ao longo dos últimos cinquenta anos, que permitiu que a intervenção humana ocorresse numa velocidade muito maior do que a lenta influência da natureza resultante da reprodução anual da planta, o ritmo das alterações aumentou em termos exponenciais. O arcabouço genético de nosso altamente tecnológico bolinho com sementes de papoula chegou à sua condição atual por meio de um processo de aceleração evolutiva que nos faz parecer o Homo habilis, preso a algum momento do início do Plistoceno.